Texto de Stella Teixeira de Barros

Mostra de gravuras e esculturas, Monica Filgueiras Galeria de Arte, Novembro, 1994

Em Retrato Relâmpago, Murilo Mendes relata sua encontro com Jorge Luis Borges, ocorrido há muitos séculos, na biblioteca do palácio e verão do imperador da Babilônia. Devaneando em torno de tal hipótese onírica, Murilo cita Borges, que cita Newton: “Cada partícula do espaço é eterna, cada indivisível momento de duração está em todas as partes”. Borges, este diretor da “pantomima cósmica”, sofre por ser sujeito ao tempo circular, à criação recorrente, à insistência da similitude entre vida e morte, enfatiza Murilo.
O envolvimento de Arnaldo Battaglini com certa “pantomima cósmica” também o leva à instância similar. Em suas gravuras, as repetições não acontecem nas tiragens, mas na reutilização das chapas metálicas diminutas que servem à impressão, cada vez reorganizadas de modo díspar, fazendo de cada gravura um obra única. Essas pequenas matrizes remetem a alguma imagem essenciais da História da Arte, mormente à da Modernidade. O artista se apropria dos torsos chapados que remontam à estatuária grega, tal como foram recuperados por Matisse nas colagens e desenhos elaborados em seus últimos anos de vida, juntamente com outras formas orgânicas espalmadas, ora em cores chapadas, ora apenas delineadas em seus contornos. À sensualidade dessas figuras, Arnaldo contrapõe a linha gerada pela impressão do arame no painel, contribuição efetiva da gráfica artesanal de Calder. De seus mobiles e stabiles, como também do Circo, das jóias, dos brinquedos e de toda a parafernália de utensílios domésticos, é possível encontrar reminiscências na obra de Arnaldo. Seus desenhos aramados recentes manifestam correlações com essa memorialística bem -humorada. Dialogando ainda com a bidimenssionalidade (como Calder na Cabeceira da cama veneziana de Peggy Guggenheim), o artista vez por outra reafirma suas aproximações com a tridimensionalidade nessas obras, com devida ênfase nas obras verticalizadas em madeira. Todavia, é nos desenhos aramados apensos às paredes que ele desenvolve, com maestria, vibrante amálgama de linhas divergentes. Estruturados em “escadas” que se organizam como eixos de escalas musicais e intermediados por superposições de fragmentos de chapas recortadas onde marca presença a languidez de certas linhas curvas, esses desenhos criam verdadeira engenharia rítmica, mas sem qualquer função ilustrativa. Também presentes no papel, essas estruturas de escadas, arcos e apontamentos gráficos parecem agora redimensionar o equilíbrio dos elementos que o gravador manipula, ao mesmo tempo que indicam afinidades com o Boogie Woogie de Mondrian, com as irreverentes formas orgânicas de Miró, ou ainda, com as composições pulverizadas de Anthony Caro.
As configurações de Arnaldo Battaglini apresentam-se de modo inequívoco às desse fixadores de linguagem plástica, e delas extrai, em cores mais baixas, momentos arquetípicos, definidores. Sabemos que a questão das influências é um capítulo delicado : a evidência pode parecer clara, mas pode ser enganadora. Cabe pois investigar na derivação de fenômeno singulares como ela se desenvolvem e se constituem enquanto obra concisa, em seu “modus significandi”.
A reelaboração paciente de sintagmas reflete a exaustiva volta completa de uma idéia, que, articulada em nova arrumação, estabelece nova reconquista do espaço, com outro intuito simbólico. Entre o surgimento das primeiras formas, já distanciadas no tempo e o tratamento poético que ainda sustentam, podemos perceber os limites de puro lirismo intimista face à objetivação da experiência deslizando e crescendo a cada passo.
A deliciosa leveza das obras de Arnaldo Battaglini, através dos fragmentos imagéticos, pontua serenas extensões constelares, resvala em microcosmos da natureza, aponta para esquemáticas construções arquitetônicas. Movimenta todo um universo onde fica claro, mesmo quando as figuras parecem dançar no vazio, o horror ao caótico. Pela unificação dos registros matriciais, a sensibilidade refinada do artista encontra, sempre numa nova coerência, analogias que circunscrevem em cada trabalho seus limites, como se fosse blocos não cambiáveis, à maneira de arquipélagos. É uma peregrinação interior por territórios da memória que procura ressurgir de um mundo não anulado mas transformado, pungente ou acariciante, reconstruído liricamente num campo solitário e denso que parece se revelar quase etéreo, luminoso, mas de onde um certo eitos dramáticos não está excluído, Destas obras se desprendem, sob a sedução aparente com economia e rigor, o fluxo inexorável e encantatório de tempo circular.

Stella Teixeira de Barros – outubro, 1994.
São Paulo.