A construção íntegra dos territórios
A construção íntegra dos territórios
A linha, mesmo aparentemente simples, traçada por Arnaldo Battaglini, encobre em si uma trajetória repleta de consistência e sofisticação, onde o tempo e o pensamento ocupam lugares privilegiados. Este artista paulistano construiu-se enquanto artista, da mesma forma como constrói suas obras, uma a uma: com firme delicadeza. Desde criança, já se interessava pelo desenho e, embora desconhecesse a possibilidade de se profissionalizar na arte, freqüentou vários cursos livres. Em sua história de diálogo com a questão do espaço, conta que a mudança da família de um apartamento pequeno no bairro da Lapa, para uma casa ampla plantou a semente da descoberta da escala. Ele tinha cinco anos de idade quando isso aconteceu.
Lembranças marcantes da adolescência vêm pontuadas pela influência do pai, então dono de uma agência de viagens. Além de proporcionar viagens familiares, que incluíam visitas a museus, ele levava para casa materiais gráficos, como um calendário sofisticado de uma importante companhia aérea japonêsa, dotado de uma qualidade gráfica que impressionara Arnaldo de maneira definitiva.
Jovem, em meados dos anos 1970, no compasso da vibração do movimento hippie, do psicodelismo e do rock e da procura de liberdade e de novas formas de vida, abandonou os planos de fazer faculdade de comunicação no Brasil e partiu para uma viagem de aventura pela Europa. Destino final: Londres.
Ali, aos 21 anos, Arnaldo Bataglini pode perceber e usufruir de um lugar onde a cultura ocupava um lugar pulsante na vida cotidiana. Na primeira fase de sua estadia londrina, em meados dos anos 70, sua relação com a arte se iniciou de forma intimista. Ele freqüentou cursos de gravura em Espaços Culturais como o Morley College, sob orientação da gravadora Birgit Skold e de desenho no Camden Art Centre, com David Carr. Aprofundou-se na gravura em metal como matéria optativa no Foundation Course da Wimbledon School of Art. Neste período criava suas obras a partir de detalhes de autoimagem no movimento cotidiano. Eram suas pernas e um pedaço de seu jeans vistos de cima, com folhas de jornal ao chão, vistas para a cidade em conversa de escala com a janela do apartamento; ou a vista de objetos pessoais que o cercavam dentro de seu quarto, em Belsize Park e Hampstead. Uma gravura de 1979 mostra o que sobrara de dentro dos bolsos: chaves, um lápis, um maço de cigarros. Outra série a que se dedicou foi a visão da arquitetura. Um desenho a nanquim registrou cenas de Buttler´s Wharf , galpão que abrigava espaços para estúdios onde dividiu um grande atelier com o arquiteto Paul Whitley. O local posteriormente foi alvo de uma reurbanização e apesar dos galpões manterem a mesma aparência externa, um novo bairro residencial de altíssimo padrão se instalou ali ‘a beira do Tamisa.
Na volta ao Brasil, o olhar do artista voltou-se definitivamente para a cidade. No processo estabeleceu-se uma forma de percepção do espaço que se torna irreversível em toda e qualquer forma de gravura ou escultura: a observação da mecânica das formas, das estruturas que sustentam o desenho dos espaços.
Em seu percurso de observação estrutural, Arnaldo Battaglini volta-se para os ossos. ‘A época, com a autorização o responsável pelo departamento de anatomia da Faculdade de Medicina da USP, passou a freqüentar e observar as estruturas ósseas humanas e a reproduzi-las em seus desenhos e gravuras. Numa etapa seguinte, as formas orgânicas foram simbolizadas em paisagens em que conchas e folhas ganhavam arranjos de corpos, em analogias poéticas.
Nesse momento, meados dos anos 80, o artista cria recortes gráficos onde, ao invés de descrever contornos, passa a se deter na energia das linhas, suas sobreposições e transparências. Suas gravuras em metal ainda são feitas com placas de matrizes únicas, mas contêm elementos individualizados.
Nas gravuras, cada elemento dessa cartografia de objetos foi ganhando independência. Até que restaram estruturas independentes. De modo progressivo, Arnaldo Bataglini chegou a uma síntese, uma limpeza formal que naturalmente desembocou numa espinha dorsal feita apenas de linhas.
Esse movimento, de fato, abre duas novas frentes de trabalho: por um lado, levam o artista à joalheria e por outro, à escultura. E é a última que enfocaremos aqui.
De verdade, a escultura começa da gravura. Tudo vira linha. Battaglini inventou de partir e vergar pedaços de arame, e entintá-los e pressioná-los sobre o papel, procedimentos nada tradicionais de gravura em diálogo com elementos tratados de forma tradicional. Outras vezes, os arames faziam sulcos na chapa metálica e viravam relevos negativos.
Juntando o rigor do processo da gravura à nova atitude de brincar com os fios de arame, surge uma nova somatória plástica. Eis a chegada definitiva da escultura.
Arnaldo Battaglini começou experimentando organizar seus fios de arame na parede. Foram muitas as estruturas, as arquiteturas, os jogos de escala, de sombra e luz, de espessura. O trabalho em si tornou-se mais lúdico e sintético. Estrutural como os ossos da espinha dorsal. E depois de utilizar por vários anos metais não ferrosos, como o cobre e o latão , o artista partiu para o uso do ferro como matéria básica.
Uma série importante foi chamada de Escadas. Ali, a estrutura de escalar degraus foi exercitada de mil e uma maneiras diferentes. Espaços flutuantes intercalados por eixos estruturais de dimensões e posições diferentes aparecem e tomam corpo ali. Criam uma arquitetura do deslocamento, mesmo que fixas às paredes.
Na verdade, as esculturas de Arnaldo Battaglini são espelhos de simplicidade. O que as torna tão especiais é justamente a elegância das linhas e o jogo das sombras que cria novos e inusitados desenhos de projeção. E isso, como muitas das coisas mais especiais da vida, surgiu meio ao acaso. E então passou a ser incorporado na intenção da forma.
Outro ingrediente fundamental que garante a potência do trabalho está na sutileza das diferenças. Ora existem as linhas de ferro que estão no plano, ora há as que saem do plano. Ora são finas, ora engrossam em determinados eixos. Vazados, linhas e transparências seguem uma dança de encadeamentos que geram zonas limítrofes.
Arnaldo Battaglini agora está ainda mais sintético. Suas esculturas resumem-se a interpretações de cubos. E aqui, mais do que em qualquer outro lugar, densidades e escalas se alteram, e todo um universo de planos e sombreamentos se reveza, fluindo do campo físico, visual, para o campo mental. É ainda uma estética de jogo. Uma estética cuidadosamente apresentada, mas que rompe consistentemente com nossas convenções sobre a imagem e suas representações.
Katia Canton